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Aqui contamos histórias sobre nossas peripécias dando a volta ao mundo em nosso veleiro. Nós somos: Fabio, Miriam, Caio, Rafael e Cacau e não sabemos onde vamos parar, só sabemos que vamos "Para onde o vento vai".


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A semana do furacão DANIEL

Claro que furacão é um nome muito forte para um evento que ocorre no mediterraneo. Aqui eles chamam de Medicane (em vez de Huricane)

Um centro de baixa pressão atinge menos de 1000 hpa com um vórtice bem definido girando em sentido anti-horário com linhas de pressão formando um desenho igual ao desenho que forma um furacão no Atlântico.

Falando de nomes: Furacão e Tufão tem nomes diferentes por causa da localidade onde ocorrem enquanto um ciclone se transforma num furacão ou num tufão no momento que os ventos ultrapassam os 150 km/h.

O mediterraneo é muito pequeno para formação de um furacão ou tufão, mesmo que em certas condições os ventos locais possam passar de 150 km/h. Ventos como o Bora no inverno podem atingir até 300 Km/h mas não formam o desenho típico de um furacão.

Conhecer os regimes de vento do mediterraneo é fundamental para navegar por aqui, mesmo que você resolva pegar somente os ventos de verão, às vezes você se encontra diante de um Meltemi (vento típico do Egeu) que te quebra as pernas.

Voltando à experiência vivida em Malta. O ciclone Daniel passou ao largo do canal de Malta suficientemente perto para sua borda exterior ocidental passar sobre as ilhas. Ficamos monitorando o andamento dos ventos para entender como nos abrigar dos efeitos do Daniel.

Eu e a Miriam não gostamos de enfrentar ventos fortes atracados em Marinas então fizemos o que achamos correto fazer. Preparar o barco e procurar uma ancoragem segura (claro que isso é psicologicamente relevante mas não muito relevante sob o ponto de vista prático)

A ideia aqui é compartilhar um pouco de conhecimento náutico e situações enfrentadas no mundo real que, segundo Murphy, emprega toda a sua energia para provar que alguma coisa que pode dar errado vai dar errado no pior momento possível.

Ter em mente as lições do mestre Murphy sempre nos coloca em alerta. Não esperar que o vento diminua porque escapou a escota da genoa. E o caso típico que Murphy nos ensina: O vento vai aumentar de intensidade sempre que você estiver num veleiro e ocorrer um problema com suas velas !!!

Pode parecer cruel, mas isso é libertador. Imagine que você não está preso à crença de que algo pode melhorar. O que sobra ? Você deve fazer o que deve ser feito e pronto.

Murphy no mar é um mestre implacável, mas um bom mestre sem ser um mestre bom !!!

A estratégia é tudo neste caso. O furacão DANIEL puxou consigo ondas de 5 a 10 metros. Isso é uma tragédia no mediterraneo. A dinâmica das ondas num mar pequeno torna a navegação uma arte. Entender as ondas que começaram sua formação a uns 500 km de onde você está e perceber que outras ondas tem direção completamente oposta das ondas provenientes do furacão me fez pensar no tamanho do mediterraneo.

Um medicane começa e termina num prazo médio de 1 semana. Neste prazo ele se desloca por sobre o mar até encontrar terra e começar a perder força. Como o mediterraneo é geograficamente uma extensão de água chamada de Mar e não de Oceano, as ondas começam no mar, vão até as margens e refletem voltando sobre outras ondas que estão sendo formadas.

Considerando a baixa profundidade essas ondas têm um formato menos alongado e são mais íngremes, o que é um desastre para navegação.

Navegar um medicane não é uma boa ideia !!!

Então procuramos abrigo. O que achamos era próximo da entrada do porto de Malta (Valletta) ancorado numa pequena baía dentro do porto.

Fizemos ancoragem de proa e amarração popa. Local com profundidade de 8 metros.

Claro que Murphy tinha o que falar e falou da seguinte forma: As ondas previstas no local viriam de uma direção, mas por causa da geografia do porto estas ondas refletem internamente e se propagavam em uma outra direção, pegando o LADY BLUE de traves.

Estávamos bem ancorados e atados a terra com cabos fortes. Os primeiros dois dias do furacão foram voltados a manter as coisas em pé dentro do veleiro. Nada muito diferente do normal.

Minha experiência (quase inexistente) me disse que ali não seria confortável passar os outros dias na mesma posição, então soltamos os cabos de popa e ficamos de proa para as ondas, deixando o vento entrar de boreste.

O dondolio melhorou muito !

Com essa mudança melhorou o estado de ânimo do pessoal de bordo. Não sentimos a presença de chuvas muito fortes nem de ventos muito fortes, mas ao olhar o quebra onda do porto percebemos que as coisas estavam feias do lado de fora.

O estranho é que já ficamos várias vezes nessa ancoragem e o movimento de entrada e saída do porto é intenso durante todo o dia e toda a noite. Nestes quatro dias não vimos sequer uma embarcação deixar o porto.

Na ancoragem deixamos a razão de 8x1 entre corrente e profundidade (8 vezes a profundidade do local da ancoragem contado do bico de proa). No liame eu tenho 100m de corrente e 20 de cabo. Nunca usei a parte do cabo para ancorar.

O LADY BLUE se manteve no mesmo local relativo durante todo o evento e sentimos que nossa decisão, naquela situação, foi correta.

Em algumas marinas de Malta os incidentes e pequenos danos foram a regra. A experiência de vivenciar uma situação como essa nos mostra que a solução mais simples costuma ser a mais eficaz.

Quem vive no mar precisa ter em mente que somos insignificantes perto das forças envolvidas e essa insignificância precisa ser transformada em humildade.

"Senhor, o teu mar é tão grande e o meu barco tão pequeno!"